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Dr. Guilherme Rapozeiro França

Dr. Guilherme Rapozeiro França

Professor Adjunto Departamento de Ciências Fisiológicas - Farmacologia Instituto Biomédico - UNIRIO

Paracetamol: novas descobertas apontam para ação sobre sistema endocanabinoide.

Dr. Guilherme Rapozeiro França - 
Professor Adjunto - Instituto Biomédico - UNIRIO -

(14/03/2017) - Sintetizado pelo químico americano Harmon Northrop Morse, em 1878, e clinicamente admistrado pela primeira vez pelo médico alemão Joseph von Mering em 1887, o Paracetamol ainda hoje é um dos medicamentos mais utilizados para o tratamento da febre e da dor leve a moderada. Se comparado aos anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs), como o diclofenaco e ibuprofeno, por exemplo, o paracetamol não é eficaz sobre a redução dos processos inflamatórios. Por outro lado, ao contrário dos AINEs, quando utilizado nas doses recomendadas, o paracetamol tem a vantagem de não produzir dano gastrointestinal, alterações na agregação plaquetária ou efeitos cardiorrenais importantes. A grande desvantagem do uso deste medicamento vem do seu potencial efeito hepatotóxico, fazendo com que o uso de forma irracional possa levar o paciente a desenvolver um quadro de falência hepática (para revisão: Woolbright e Jaeschke, 2017). Desta forma, o uso de paracetamol vem sendo muito questionado pela comunidade médica.

Um fato perturbador que ainda permanece sobre o paracetamol está relacionado ao entendimento do seu mecanismo de ação. Durante a década de 1970, Flower e Vane mostraram que as ações antipiréticas do paracetamol ocorria por bloqueio da enzima prostaglandina sintetase no cérebro. De fato, isto ajuda a entender os efeitos antipiréticos deste medicamento, uma vez que a inibição desta enzima acarreta na diminuição da síntese de prostaglandina E2 (PGE2), que por sua vez age no centro termoregulador no hipotálamo. Porém, não esclarece seus efeitos analgésicos sequer a ausência de reações adversas comuns aos AINEs. Mais recentemente, o bloqueio da ciclooxigenase 3 (COX-3) no cérebro também foi proposto, porém a interação entre o paracetamol e a COX3 ocorre de forma muito inespecífica e fraca, mantendo o paracetamol na escuridão do entendimento dos mecanismos de ação farmacológicos (Schwab et al., 2003).

Entretanto, dados crescentes na literatura apontam que o efeito analgésico seja atribuído à ativação indireta dos receptores canabinoides, mais especificamente o receptor CB1 e também de receptores vaniloides (TRPV1).

Mas como isso de fato acontece?

Quando injerimos o paracetamol, ele será absorvido pelo intestino e entrará em nossa corrente sanguínea. Um sistema de vasos sanguíneos conduzirá o paracetamol até o fígado e parte do paracetamol absorvido será convertido a um metabólito biológicamente ativo, o p-aminofenol. Este metabólito chegará ao tecido nervoso e sofrerá conjugação com o ácido araquidônico, formando o endocanabinoide N-araquidonoilfenolamina. Este composto, uma vez formado dentro dos neurônios, causa analgesia por pelo menos dois mecanismos distintos:

- Atua como um agonista dos receptores TRPV1 (Mallet et al., 2010), produzindo ação analgésica através da estimulação de vias inibitórias descendentes da dor.
- Inibe a recaptação de anandamida, promovendo um aumento dos níveis extracelulares deste endocanabinoide. (Beltramo et al., 1997; Giuffrida et al., 2001).

Assim, o paracetamol passa a atuar também como um pró-fármaco, pois precisa ser previamente convertido a um endocanabinoide. Estes achados finalmente ajudam a explicar um dos mecanismos de ação do paracetamol e a peculiaridade de seus efeitos, incluindo os comportamentais. De maneira intrigante, vivemos um momento em que novas drogas com alvo no sistema canabinoide estão sendo produzidas. Laboratórios de diversas partes do mundo investem milhões de dólares no desenvolvimento de fármacos que modulam este sistema, para no final das contas, nos depararmos com o fato de que um medicamento utilizado a mais de 100 anos, possui como mecanismo de ação analgésico, a modulação do sistema canabinoide.

Para saber mais sobre o assunto:

Beltramo M, Stella N, Calignano A, Lin SY, Makriyannis A, Piomelli D. Functional role of high-affinity anandamide transport, as revealed by selective inhibition. Science 1997;277:1094–7

Giuffrida A, Rodriguez de Fonseca F, Nava F, Loubet-Lescoulie P, Piomelli D. Elevated circulating levels of anandamide after administration of the transport inhibitor, AM404. Eur J Pharmacol 2000;408:161–8.

Flower RJ, Vane JR. (1972). Inhibition of prostaglandin synthetase in brain explains the anti-pyretic activity of paracetamol (4-acetamidophenol). Nature; 240:410–411.
Schwab, J.M., Schluesener, H.J and Laufer, S. (2003). COX-3: just another COX or the solitary elusive target of paracetamol? THE LANCET. Vol 361
Mallet, Christophe et al. “TRPV1 in Brain Is Involved in Acetaminophen-Induced Antinociception.” Ed. Kazutaka Ikeda. PLoS ONE 5.9 (2010): e12748. PMC.
Woolbright, B.L., Jaeschke H.J., (2017). Role of the inflammasome in acetaminophen-induced liver injury and acute liver failure. Journal of Hepatology.

 

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